quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Pedaços de solidão noturnos à Nassar

Dormíamos em quartos separados, éramos como esses casais modernos, que prezam pelo espaço e não seguem as tradições. Fazíamos já quarenta anos de casados, alguns nos olhavam com admiração, diziam o quanto nos devíamos amar. Acho que eu compartilhava dessa ilusão, de que de fato nos amávamos.

Esta noite, acordou-me em meu sono e, como sonâmbula, abriu minha porta sem nem bater - o que não era de costume -, com sua camisola descorada e um olhar que, apesar de não conseguir vê-lo na penumbra, presumia sê-lo taciturno. Quedou-se ali, em pé e em silêncio, como quem está a poucos passos de desmoronar - e eu cheguei a pensar que ela o faria, cairia em prantos, com estrondo. E eu também não ousei proferir uma palavra. Chegou perto a mim, deitou-se ao meu lado, e eu pretendi costumice, virei pro outro lado, como se o hábito percorresse a madrugada.

Ela levantou-se e foi ao canto do quarto. O seu estancamento tornou-se inquietação, e ela passou a perambular em um espaço mínimo. Roía suas unhas, mexia-se com os pés e cambiava suas expressões com veracidade. Chegou perto à minha cabeceira, e apanhou um dos meus blocos de anotações, nos quais eu guardava meus textos e poesias, e ela nunca ousava abrí-los sem que eu pedisse para que opinasse. Colheu, também, uma caneta que sempre deixava ao lado destes. Abriu a primeira página, na qual permeava uma poesia antiga que ali se detia como memória. Fitou-a com desdém e escreveu por cima, com letras garranchadas e despreocupadas, como um grito de súplica sonâmbulo:


- Pra onde foi o nosso amor ?

Um comentário:

  1. Gostei muito desse.
    E acho que talvez as pessoas errem ao querer saber onde é que o amor está, ao invés de descobrir que caminho ele seguiu.

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