quarta-feira, 14 de julho de 2010

Depoimento-ficção d'um preso- Inspiré de Truffaut


Não, não, eu não nasci em berço. Nem me lembro, não senhora, de ter sido bem-tratado. Perdi minha mãe aos nove anos, e meu pai nos abandonou. Minha tia me acolheu, e já me pôs a trabalhar. Nunca reclamei, nem mesmo considerava errado. Só acho que gostaria de, talvez, viver o mundo de um outro modo, assim, quando eu via os meninos das casas que eu limpava fazendo outras coisas que não trabalhar. Às vezes queria só isso: conseguir enxergar quão bonito era um beijo, quão bela era uma pessoa, ou quão significativo era um olhar. O tempo não me permitia. Era trabalho, trabalho, trabalho, que nem poderia ser considerado trabalho infantil. Nem acho plausível considerar que tive uma infância. Pode escrever isso aí, na sua caderneta, psicóloga. Posso te chamar assim ? Psicóloga é que nem professora, né, que a gente chama de professora mesmo, ao invés de chamar por nome. Tá bom, certo, como eu preferir.

Foi então, um dia, que resolvi pegar algo emprestado. Eu tava limpando o quarto de um menino, que tinha lá os seus treze anos, enquanto eu beirava os meus quinze. Ele tinha uma máquina fotográfica - não era profissional, e o seu preço era ínfimo em comparação à fortuna que ele possuía. Enquanto arrumava a sua cama, olhei de relance a câmera. Vi se tinha alguém em casa. E resolvi provar. Encostei-lhe os dedos. Ligou. Aparecia naquela pequenina tela a imagem que me estava em frente. Apertei o botão de cima. Flash. E foi naquele momento que tirei a minha primeira foto. Não era uma máquina profissional, mas aquela imagem era linda. As cores eram quase naturais, e de alguma forma, via-se naquela precisão do momento pausado uma beleza imensurável.

Eu ? Não, não, psicóloga. Não ousaria olhar suas pernas. Não que não sejam bonitas, tenho certeza que são. Mas seria muito desrespeito. Percebi, apenas, que a senhora as cruzou.

Tá certo, voltando ao acontecido, eu não roubei-lhe. Apenas peguei emprestado. Sem pedir, sim, mas sabia que se eu pedisse, não me emprestaria. Tirei fotos tantas. Tirei fotos de pessoas, de beijos, de momentos, de teatros, de lugares - Esplanada, Museu Nacional, as tesourinhas, a rodoviária. Brasília tem uma beleza que podia ser capturada a qualquer momento, em qualquer lugar. Era tudo tão concreto, tão bonito. Devolveria na semana seguinte aquela máquina.

E quando a fui devolver, não havia percebido que o menino - dono do quarto, da máquina, de tudo - me observava, me seguia. E me apontava logo quando eu a deixava em sua cabeceira - MÃE, MÃE, ELE ROUBOU A MINHA MÁQUINA! - E chorava feito um bebê. Esperniava. Sua mãe chocou-se. Mandou-me ao juízado de menores, entende ? Daí foi que cheguei aqui. Acho que todo mundo daqui tem que visitar a senhora, né psicóloga ? Pois eu queria só lhe pedir...

- Acabou o seu tempo, pode se retirar.

Depoimento do preso 33 à psicóloga 22, juízado de menores.

Um comentário:

  1. nós sentimos a pressão de um dedo no disparo de um flash, num depoimento, na tristeza, na beleza, e outro flash por consequência.
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