quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Comodismo

Nesta tarde de domingo, não há como lembrar de nada senão de nossos domingos, nos quais nos trancávamos em nossa casa, nós dois isolados do mundo, como se não o suportássemos. Você cozinhava algum prato do dia, que normalmente já acordava com a ideia de fazer. Cada domingo, você acordava com vontade de um país diferente. Deitávamos no nosso sofá, com taças de vinho, Miles Davis nos acompanhava, e no final da tarde, algum filme - que eu pedia enfadonhamente para que você não o locupletasse de críticas. Era o dia que mais gostava da semana. Nos domingos, me fugia aquele desejo imoderado de querer sempre fazer algo produtivo, mania que trouxe da América. Aliás, acho que o que mais sinto falta da gente é os domingos, os quais me parecem agora acesos de solidão. Não sei o que aconteceu conosco. Diziam alguns que o comodismo viria com os anos de casamento, mas sempre fomos contra, dizíamos que seríamos excessão matrimonial. Quando nos conhecemos, nós dois extravasando ideais revolucionários, você com seus discursos que transbordavam vermelhidão, e eu ainda meio perdida, mas com uma vontade imensurável de querer mudar o mundo. Não cansávamos de beijos, de romantismos, de passionidades. Hoje, a sua bandeira vermelha foi trocada por um discurso neoliberal, as suas palavras de amor silenciadas pela descrença. Você diria que amadurecemos. Eu diria que nos acomodamos - nos ideais e no amor.

É o cotidiano, talvez , que nos esfriou. Esqueci, no entanto, o nosso passado cotidiano. Não lembro bem o que nos passava durante todos estes anos. Fugiram-me à memória as nossas vontades, contadas no sofá de nossa sala - devem ter sido tragadas pela lareira que nos aquecia nos invernos. E mal me lembro de memórias, engolidas por fotografias reveladas, algum dia olhadas, e hoje jogados no galpão.

Em meu esquecimento, lembro-te, ao menos, em carne, que me era, antes, trêmula, e hoje me remete apenas o conforto.

E, quem sabe - apesar de minhas frustrações -, não é o comodismo melhor do que o amor.

4 comentários:

  1. Muitos comodismos que a geração da década de 60, 70 e 80 sofreram. Os revolucionários estão escondidos em várias regiões atualmente, basta saírem da obscuridade.

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  2. Gostei dos jogos com as vírgulas, foi bem escrito.

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  3. Os jovens precisam estar cientes desse comodismo para não serem atacados por ele. Se conseguirem controlar a mente, não serão postos pelos instintos da fase adulta de comodidade e os ideais e o amor revolucionário existirão. Marx foi um revolucionário até o final de seus dias por causa do controle mental e controle dos instintos.

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  4. Uma frase do Tolstói para muitos aspirantes a revolucionários: "Todo mundo quer mudar o mundo, mas ninguém quer mudar a si mesmo".
    A mudança interior é a mais importante, a mudança do mundo é consequência disso. Vamos traçar o nosso próprio caminho de sabedoria e nos inspirarmos em mestres como Gandhi nessa revolução interior.

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