quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Carta à Ninguém

Aqui estou eu, mais uma vez, a jogar letras em um pedaço de papel que nem mesmo tem destinatário, apesar de ser destinado à você. O relógio sussurra ininterruptamente em meus ouvidos. Decido calá-lo. E calo também o tempo, que parece sempre querer me atrasar. A vida aqui corre mais do que no nosso Brasil. Talvez sejam os ventos ingleses que, neste outono, choram em minhas janelas em rapidez, levando consigo folhas secas. Folhas secas que me remetem à ti. Lembro de como era um de teus vícios - folhas secas, cigarros e o som de estouro daquelas bolhas de ar de pequenos sacos plásticos que viriam em novos móveis. O outono também me agrada. Consigo andar pelos campos perto de minha casa, observar as flores a desvestir-se à nudez do inverno. E fecho os olhos para que me venha a tua imagem em mente. E suspiro.

Te penso a cada segundo, e se eu contasse os segundos que possivelmente faltam para que nos vejamos novamente, chegaria à conclusão de que morreria antes de ver-te - definharia de amor. Sinto falta de tua invenção estatística, de teus cantos no chuveiro, de tuas palavras sentimentais, e do coentro que só você sabe o ponto, que acompanhava o filé, que só você acertava o meu gosto, ainda que vegetariana.

E cá estou eu, do outro lado do mundo, sem saber se te ligo e te digo tudo que me enlaça a garganta, num grito contido, e chego a m'enduvidar se deveria te mandar cartas respondendo as tuas. Elas vêm sempre, dia sim, dia não, com aqueles enhances artísticos pensados somente por ti. Queria bem te responder. Mandar abraços aos nossos filhos. Seria muita hipocrisia. Não quero que sofras por mim. Nem mesmo sei se voltarei. Não quero que entendas meus sentimentos. 'O exército te mudou muito', você sempre disse, e não acho que você tenha que entendar minhas mudanças. Eu ainda tento entendê-las. E quanto mais me penso, quanto mais me entendo, mais eu percebo o quanto eu não sou eu. Ao menos ainda me resta o teu amor. O nosso amor.

Espero que esteja bem. E, de fato, imagino nossa casa como uma floricultura, plena de rosas vítimas dos teus charmes rodados. E sei que, apesar das cartas que mandas trivialmente, estás a te deleitar com homens tantos, e a se conhecer com mulheres várias. E gosto de pensá-lo.

A nossa distância é o silêncio, que um dia expressou a nossa intimidade. Pensei em medí-la, não em metros, mas em palavras e súplicas. No entanto, contar caracteres me deprimiria tanto que preferi não fazê-lo. E aqui sento eu, em frente a uma máquina de escrever antiga, e imagino-te perto a mim, dizendo o quanto sou ultrapassado. O corriqueiro whisky ao meu lado. Penso na hipótese de poder voltar ao meu lar. De poder voltar à você.

Não posso te escrever. Se eu te escrever, entenda, apenas anteciparia minha morte. Pensar-te, por enquanto, me basta. Pensar-te e amar-te.

3 comentários:

  1. Uma carta encantadora. Um eu-lírico dos anos 30 do século XX. Apaixonante e belíssima. Passou um sentimento saudoso dos tempos das boas cartas. Nos envelopes com carimbos e selos de lugares inúmeros tal como os sentimentos retratados com elegância e sutileza das metáforas. Ênclises leves. Uma prosa poética...

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  2. Amei esta carta como rúculas e molho shoyo.

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